O Cosmos é tudo o que existe, existiu ou existirá.

domingo, outubro 29, 2023

A casa onde cresci

 

 
1976 - Eu e a minha avó Gracinda

Eu cresci na casa dos meus avós. Nessa casa viviam comigo os meus pais, os pais da minha mãe, Gracinda e Américo e durante algum tempo ainda o meu tio Azevedo, até este se casar com a namorada de Arões e partir. Nos primeiros anos dormia num berço ao fundo do quarto dos meus pais e assim que me tornei grande para o berço, ou para estar no quarto dos meus pais, fui dormir para o antigo quarto do meu tio, quarto que alguns dias por semana ainda partilhava com ele, pois apesar de casado os tempos eram apertados, as viagens para a serra cansativas e caras e o emprego dele continuava cá. O meu tio foi uma espécie de irmão mais velho, ainda que com idade para ser meu pai, com quem eu dormia 3 noites por semana. Recordo-me que me tratava por algo como “macambúzio”, um nome que era uma espécie de abuso mas também uma espécie de carinho.

Ao lado do nosso quarto, era o quarto dos meus avós, a quem eu durante a infância toda tratei por padrinho e madrinha, pois os meus pais também os escolheram para esses papéis, o que fazia sentido pois além de avós eram uma espécie de segundos pais, padrinhos. Os primeiros anos foram passados nesse micro cosmos que foi a casa e o pátio dos meus avós, Era uma casa rural e por baixo da casa tínhamos vacas, um galinheiro em frente da casa e ainda um elemento exótico numa gaiola grande debaixo da nossa varanda que eram os 2 casais de faisões que o meu tio tinha trazido, segundo me contaram, do seu tempo de serviço militar em Portalegre (que como sabemos é uma terra nativa dos faisões).

As minhas primeiras memórias estão nos anos 80, lembro-me do calendário na sala, que naquele ano de 1982 me pareceu ser um elemento de decoração permanente pois os anos ainda eram longos e tudo estava cheio de novidade. A minha mãe costurava nessa mesma sala e ao lado na cozinha tínhamos a lareira. A minha avó sentava-se em frente à lareira normalmente virada para a sala sempre com a porta aberta, onde ao fundo estava a televisão que nesses anos era ainda um bem de luxo. Tínhamos a sorte de ter televisão, frigorífico e fogão a gás, o que naquele meio pobre que me rodeava me fazia sentir parte de uma elite. Confesso que até ao meio de adolescência quando na secundária conheci miúdos de famílias mais abastadas e até de classe média nunca tinha percebido que era pobre e isso devo aos meus pais e avós que sempre me deram o que era importante e nunca me deixaram sentir carenciado. Os meus luxos eram o colo da minha avó a quem eu procurava junto à lareira e lhe pedia para me sentar e “desaugar” do colo um bocadinho. Acho que até perto dos 10 anos continuei a adorar esse pequeno luxo mesmo quando já era demasiado pesado para as suas pernas.

Toda esta nostalgia foi despertada em mim pelo falecimento da minha avó. Era a última dos meus avós e partiu com 98 anos. A minha Avó e Madrinha Gracinda nasceu em 1925. Nestes anos recentes em que os meus filhos já estudaram alguma história, costumava-lhes fazer a analogia que se Anne Frank tivesse sobrevivido seria mais jovem que a minha Madrinha Gracinda. A Gracinda era uma entre 5 irmãos, o pai tecelão e a mãe lavradora e fiadeira, todos analfabetos. Naquelas primeiras décadas do século XX em Portugal e pelo menos na família da minha avó, a ideia instalada era que mulheres não precisavam de aprender a ler e escrever. O pai analfabeto tinha aprendido uma profissão e criado uma família, trabalhava em tecelagens entre a Covilhã e São João da Madeira, viajando de comboio e sem ser capaz de ler uma placa com o nome da estação onde passava. Se conseguia isso, porque precisaria uma mulher de saber ler? Seria perder tempo diziam eles e só ia servir para ela se perder a escrever cartas para os namorados. Também a minha mãe, noutra geração, foi alvo deste estigma, foi para a escola e aprendeu a ler e escrever até à terceira classe, mas mal lhe nasceu um irmão e a mãe precisava de trabalhar, veio para casa com 8 anos para ser ama do irmão recém-nascido. Quando a Gracinda foi mãe pela primeira vez, estávamos em 1947, nasceu a Glória que viria a ser a minha mãe, viviam em casas antigas no lugar de Carregosa de Baixo, compradas pelo avô da Gracinda ainda no século XIX e os tios e pais dela viviam encostados em casas de pedra, todas agrupadas nesse bocadinho de terreno que tinha sido do avô. A casa onde a minha mãe nasceu era de chão de terra e sem janelas. Naquele ano Portugal ainda vivia o racionamento causado pela pobreza que o tempo da Guerra Mundial e da ditadura trouxeram. A jovem Gracinda de 21 anos tinha sido mãe em casa e depois de ter descansado um dia sentiu que precisava de comer, para poder gerar leite para a sua bebé. Mas não tinham comida em casa e foi à casa de pedra ao lado, onde tinha crescido com os pais e lá encontrou umas côdeas de pão, que recontou-me a minha mãe, foi a sua primeira refeição no dia depois do parto, bebendo uns bons goles de água, a única coisa que era gratuita mas não sem trabalho, pois não havia água canalizada, apenas fontes onde a água brotava e de onde a tinham que carregar para casa. Nos dias seguintes uma das cunhadas veio-lhe trazer a pouca comida que tinha em casa e foi com a solidariedade que sobreviveram. Por esta altura o meu avô era sapateiro em casa, mas as pessoas não tinham dinheiro para sapatos e o trabalho que conseguia era de uma fábrica a 8km em São João da Madeira que lhe dava sapatos para fazer. Ele fazia sapatos em casa e a minha avó acartava à cabeça numa cesta os produtos acabados, carregando para trás mais materiais. Isto a pé, ao longo de estradas de terra e sem iluminação. Quando o meu avô, talvez pela década de 60, conseguiu trabalho na fábrica com um salário certo, todos no lugar de Carregosa de Baixo diziam à Gracinda: “Agora é que vocês vão ficar bem, com tanto dinheiro que o teu homem esfola.”

Assim se passaram os anos, o meu avô que ficou com um dos quinhões dos terrenos do avô da Gracinda, construiu também uma casa de pedra, com 2 divisões de 20m2 no total e aí fez a sua casa própria. Com o passar do tempo e o amealhar lento construíram para cima e aumentaram a área da casa para o dobro. As décadas passaram e quando a minha mãe se casou em 25 de Maio de 1974, um mês depois da revolução, já tinham comprado mais uma casa de pedra ao lado com mais 12m2 e aumentado também para cima, o que levava a casa para uma área útil de 32m2 em cada andar, tendo ainda um pátio com o mesmo espaço da casa. Foi nesta fartura que eu nasci em 1976. Não nasci em casa, pertenci aquela geração de transição que deixou de nascer com a ajuda da parteira em casa e nasci no Hospital de Oliveira de Azeméis.

O meu jardim-de-infância foi nos arredores dos campos enquanto a minha avó apanhava erva ou cultivava. Cheguei a ter uma pequena tartaruga, se calhar era só um cágado, mas nas minhas memórias era uma tartaruga grande e lembro-me de a levar comigo, teria uns 5 anos e brincar com ela nos regos de água dos campos que a minha avó trabalhava, até que um dia a tartaruga foi muito rápida e me fugiu.

Brinquei nos campos, fiz cabanas nos matos, mergulhei nos açudes, explorei terrenos silvados que achava eram selvagens e inexplorados, brincava com bogalhos e fazia bonecos, com os meus amigos que viviam nas casas ao lado, todos descendentes da mesma família, tive aventuras e desventuras, chorei, ri-me, magoei-me, aprendi e sobrevivi. E à noite voltava para a minha casa, para o colo da minha avó, para me “desaugar”, onde viviam quatro adultos e esta criança. Com o passar dos anos o meu pai fez casa própria, não vivi lá muito tempo, casei-me pouco depois e mudei-me, ficaram os meus avós em Carregosa de Baixo. O meu avô partiu quando lhe faltavam 4 meses para os 100 anos. Agora partiu a minha avó e a casa onde cresci está vazia.