O Cosmos é tudo o que existe, existiu ou existirá.

quarta-feira, março 27, 2024

O Tolo, os cruzados e a alcoviteira.

O teatro, assim como a ciência, são paixões minhas. Parecem disciplinas com origem e fins diferentes, a ciência como fruto de coisas práticas e definidas e o teatro produto da criatividade e da subjectividade, mas têm muito em  comum e foi sobre isso que me dei a reflectir neste dia mundial do teatro.
Um dos talentos mais necessários ao cientista, nome do personagem que busca o conhecimento, é um espírito critico. Observar, reflectir, criar hipóteses e testá-las, sabendo que o verdadeiro conhecimento resiste à experiência. Não basta receber informações de terceiros e aceitá-las como verdadeiras. Em ciência qualquer conhecimento adquirido pode ser revalidado pela experiência e muitas vezes mesmo que os resultados não nos agradem são os verdadeiros.
O teatro age noutro nível da experiência humana, mas também como na ciência um espírito critico é algo valioso. Não falo do critico de teatro que oferece uma apreciação do seu gosto próprio a um espectáculo. Falo da intervenção que o teatro produz no nosso seio social e cultural. O teatro é critico, observa a sociedade e o ser humano, reflecte e faz-nos reflectir, cria uma experiência teatral que nos permite absorver a nossa condição e daí permite-nos testar onde estamos e para onde vamos como indivíduos ou sociedade.
A experiência teatral foi usada ao longo dos séculos para permitir à sociedade evoluir e curar-se a si própria. Sófocles, Molière, Shakespeare ou Brecht apresentaram os problemas do seu tempo (e de sempre) e pelo humor e deslumbramento permitiram-nos olhar para nós próprios, como produtos experimentais, para percebermos o que somos, como reagimos e o que obtemos. O teatro é ciência de descobrir a nós próprios.
Em Portugal tivemos Gil Vicente, dramaturgo genial e hilariante. Gil Vicente foi O critico do seu tempo, observou a sociedade e pôs-nos a rir sobre vícios, criticando costumes e permitindo-nos evoluir para a modernidade. O meu filho estudou recentemente o "Auto da Barca do Inferno" e sentei-me com ele a ler algumas das cenas, tal como 30 anos antes eu próprio a tinha estudado, quando não imaginava eu próprio pisar um palco e viver esta paixão do teatro. E com esse espírito critico a que aludo pergunto-me hoje então, porque é que nesta obra se salvam apenas o tolo e os cruzados? À luz dos nossos dias quem são estes? Pergunta de retórica pois sigo com a resposta, o tolo é aquele que não questiona, que não quer aprender e que vive na ignorância. Por esta definição o tolo é alguém que carece de espírito critico e por este ponto de vista aceita as mentiras, engole as injustiças e não contribui para a melhoria da sociedade. Merece então salvação este tolo? Nova retórica, penso que não, este tolo ajuda a criar o seu próprio inferno. E os cruzados da história? Para Gil Vicente também se salvam, mas quem seriam hoje estes santos? Os cruzados eram soldados que fazem guerra e matam em nome duma fé e dum deus, sendo para eles licita a violência contra quem não partilhe essa fé. Na verdade eram os assassinos na estória do Gil Vicente. À dias um grupo de fanáticos religiosos entrou com armas numa sala de espectáculos e matou mais de uma centena de pessoas que apreciavam arte. Será licito dizer que estes assassinos, que matam por um deus, têm direito ao paraíso? Acho que não. E no outro oposto da estória é condenada a alcoviteira, nome antigo para quem vive da alcova ou cama, chamar-se-ia prostituta nos nossos dias. Esta vai para o inferno e à luz dum espírito evoluído pergunto porquê? Não tem o direito a mulher (ou homem) a usar o seu corpo? Cometeu algum crime, por partilhar calor humano e amor com quem dele necessita?
Não estou com isto a dizer que Gil Vicente estava errado, estou antes a dizer que o que ele fez no seu tempo, devemos continuar a fazer agora. Estou a usar do meu espírito critico para questionar e não aceito as respostas de sempre, apenas porque antes foram validadas. Testo-as novamente. O teatro continuará a levantar questões mas passado séculos ainda há temas por debater ou que ganham uma nova luz. E um espírito critico continuará a procurar sempre as respostas quando exposto a esta experiência do conhecimento humano.
A todos um apelo a que vão ao teatro. Pisem o palco se tiverem esse ímpeto ou aplaudam como espectadores. Vão, descubram-se e aprendam, vivam a experiência teatral e participem no nascimento de uma sociedade melhor. VIVA O TEATRO!