O Cosmos é tudo o que existe, existiu ou existirá.

quinta-feira, abril 25, 2024

Façam coisas proibidas!

O 25 de Abril trouxe-nos liberdade e quem como eu nasceu depois de 74 nunca experimentou as proibições do Estado Novo. Eu cresci num ambiente em que ainda se relembravam esses tempos, o medo demorou a desaparecer, mas com a consciência que já não havia PIDE, já não se tinha medo de falar, já não haviam denunciantes, perseguições e castigos.

Tornaram-se banais as coisas proibidas do antigamente, já só em noticias bizarras é que nos lembram que era proibido dar beijos na rua ou andar de mão dada. Mas eram tantas as coisas que não eram permitidas à luz dum estado obscurantista que achava que guardava algum valor maior, proibindo e criando medo sobre as coisas que são normais ao ser humano.

Proibiram dar beijos na rua, andar de mão dada, vender e beber coca-cola ou ter uma opinião livre sobre qualquer assunto. Ajuntamentos ou reuniões de pessoas era algo muito grave e indiciava para o regime que os participantes eram revolucionários, por isso juntar-se em grupos era um grande risco de prisão.

Era proibido casar-se com uma professora sem autorização do ministério e com as pobres enfermeiras ainda era pior, pois escolhiam uma profissão que era equivalente a ser freira. E qualquer mulher casada era uma propriedade do marido, pois viajar para fora do país só com a autorização escrita dele e ai dela que o traísse pois apanhada em flagrante e morta pelo marido era algo que a lei permitia.

Alguém escolhia por nós os livros, filmes, peças de teatro ou discos que podíamos ler, assistir ou ouvir. Coisa extremamente grave, mas se calhar das menos contestadas por uma população mantida na ignorância e analfabetismo. Porque quem nada sabe, nada questiona.

Havia ainda as proibições caricatas, como jogar cartas em comboios ou usar isqueiro sem uma licença.

Vivemos já 50 anos desde esses tempos, duas gerações já se criaram e cresceram com todas estas liberdades garantidas. Mas não esqueçamos, comemoremos o 25 de Abril da forma mais audaz, fazendo as coisas que antes eram proibidas. Dêem beijos na rua, andem de mão dada, não tenham medo de falar nem escrever, vejam filmes e ouçam músicas revolucionárias, tenham ideias disruptivas e perguntem porque não?

Liberdade para sempre! Medo e proibição nunca mais! Viva a liberdade, viva o 25 de Abril. Façam coisas proibidas!

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quarta-feira, março 27, 2024

O Tolo, os cruzados e a alcoviteira.

O teatro, assim como a ciência, são paixões minhas. Parecem disciplinas com origem e fins diferentes, a ciência como fruto de coisas práticas e definidas e o teatro produto da criatividade e da subjectividade, mas têm muito em  comum e foi sobre isso que me dei a reflectir neste dia mundial do teatro.
Um dos talentos mais necessários ao cientista, nome do personagem que busca o conhecimento, é um espírito critico. Observar, reflectir, criar hipóteses e testá-las, sabendo que o verdadeiro conhecimento resiste à experiência. Não basta receber informações de terceiros e aceitá-las como verdadeiras. Em ciência qualquer conhecimento adquirido pode ser revalidado pela experiência e muitas vezes mesmo que os resultados não nos agradem são os verdadeiros.
O teatro age noutro nível da experiência humana, mas também como na ciência um espírito critico é algo valioso. Não falo do critico de teatro que oferece uma apreciação do seu gosto próprio a um espectáculo. Falo da intervenção que o teatro produz no nosso seio social e cultural. O teatro é critico, observa a sociedade e o ser humano, reflecte e faz-nos reflectir, cria uma experiência teatral que nos permite absorver a nossa condição e daí permite-nos testar onde estamos e para onde vamos como indivíduos ou sociedade.
A experiência teatral foi usada ao longo dos séculos para permitir à sociedade evoluir e curar-se a si própria. Sófocles, Molière, Shakespeare ou Brecht apresentaram os problemas do seu tempo (e de sempre) e pelo humor e deslumbramento permitiram-nos olhar para nós próprios, como produtos experimentais, para percebermos o que somos, como reagimos e o que obtemos. O teatro é ciência de descobrir a nós próprios.
Em Portugal tivemos Gil Vicente, dramaturgo genial e hilariante. Gil Vicente foi O critico do seu tempo, observou a sociedade e pôs-nos a rir sobre vícios, criticando costumes e permitindo-nos evoluir para a modernidade. O meu filho estudou recentemente o "Auto da Barca do Inferno" e sentei-me com ele a ler algumas das cenas, tal como 30 anos antes eu próprio a tinha estudado, quando não imaginava eu próprio pisar um palco e viver esta paixão do teatro. E com esse espírito critico a que aludo pergunto-me hoje então, porque é que nesta obra se salvam apenas o tolo e os cruzados? À luz dos nossos dias quem são estes? Pergunta de retórica pois sigo com a resposta, o tolo é aquele que não questiona, que não quer aprender e que vive na ignorância. Por esta definição o tolo é alguém que carece de espírito critico e por este ponto de vista aceita as mentiras, engole as injustiças e não contribui para a melhoria da sociedade. Merece então salvação este tolo? Nova retórica, penso que não, este tolo ajuda a criar o seu próprio inferno. E os cruzados da história? Para Gil Vicente também se salvam, mas quem seriam hoje estes santos? Os cruzados eram soldados que fazem guerra e matam em nome duma fé e dum deus, sendo para eles licita a violência contra quem não partilhe essa fé. Na verdade eram os assassinos na estória do Gil Vicente. À dias um grupo de fanáticos religiosos entrou com armas numa sala de espectáculos e matou mais de uma centena de pessoas que apreciavam arte. Será licito dizer que estes assassinos, que matam por um deus, têm direito ao paraíso? Acho que não. E no outro oposto da estória é condenada a alcoviteira, nome antigo para quem vive da alcova ou cama, chamar-se-ia prostituta nos nossos dias. Esta vai para o inferno e à luz dum espírito evoluído pergunto porquê? Não tem o direito a mulher (ou homem) a usar o seu corpo? Cometeu algum crime, por partilhar calor humano e amor com quem dele necessita?
Não estou com isto a dizer que Gil Vicente estava errado, estou antes a dizer que o que ele fez no seu tempo, devemos continuar a fazer agora. Estou a usar do meu espírito critico para questionar e não aceito as respostas de sempre, apenas porque antes foram validadas. Testo-as novamente. O teatro continuará a levantar questões mas passado séculos ainda há temas por debater ou que ganham uma nova luz. E um espírito critico continuará a procurar sempre as respostas quando exposto a esta experiência do conhecimento humano.
A todos um apelo a que vão ao teatro. Pisem o palco se tiverem esse ímpeto ou aplaudam como espectadores. Vão, descubram-se e aprendam, vivam a experiência teatral e participem no nascimento de uma sociedade melhor. VIVA O TEATRO!