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quarta-feira, janeiro 27, 2021

Conto de ficção em realidade distópica sem possibilidade de se tornar verdadeira (?!)

 

Vinte quarenta, sinto-me velho. Lembro-me de quando o declínio começou, também nos referíamos ao ano pelas duas dezenas, nessa altura era uma repetição do número, não foi assim à tanto tempo, mas desde aí tanto mudou. A minha geração foi a primeira a ter sido criada na liberdade. É um facto que a nossa infância foi pobre, fruto de um Portugal sem indústria, analfabeto, filho de um regime parecido com aquele que agora nos governa. Mas apesar dessa pobreza, a liberdade e a educação que recebemos deu-nos as ferramentas para criar a riqueza, habituamo-nos ao conforto que a verdadeira liberdade e concorrência criam. Depois, quando veio a pandemia e perdemos esse conforto, levantou-se a voz a apontar culpados. Muitos acharam que os culpados deviam vir dali, nunca poderiam ser os próprios e assim a voz foi ganhando poder.

A voz apresentou-se como líder do Arriva, quem escutava para além do que ela dizia percebeu que a agenda estava nas entrelinhas e não nas palavras proferidas. Ao princípio disparatou em todos os sentidos, atacou estes, aqueles, o poder maior, as minorias, as empresas, as cooperativas e foi percebendo quais as acusações que lhe davam melhor retorno. Percebeu o que as pessoas queriam ouvir e o discurso foi-se orientando nesse sentido, não eram valores verdadeiros, não eram soluções reais, era um indrominar de espíritos que lhe foi fazendo subir degraus na escada do poder.

Os meus filhos estavam a chegar à maioridade quando pela primeira vez aquela voz maledicente chegou ao poder. Não chegou lá sozinho, fez alianças com partidos de verdadeiras pessoas de bem. Não eram as “pessoas de bem” que a voz tanto referia, aliás nunca se soube quem eram essas “pessoas de bem” de quem falava. Todos se identificavam quando o Arriva se insurgia a favor das “pessoas de bem”, achavam que os defendia, nunca perceberam que “pessoas de bem” não são todos e eram ninguém. Como uma gota de veneno que cai numa fonte pura, a aliança rapidamente ficou contaminada, de repente tudo era tóxico e na ânsia de limparem, com as coisas a piorarem, cada vez se esforçavam mais por restringir, por limpar, por sanitizar, os culpados deviam ser “os outros” e começaram a cortar direitos, a restringir liberdades. O jornalismo que serve como termóstato da democracia não se calou, fez o seu papel, e de repente ficamos sem liberdade de expressão, a favor do estado de direito e das “pessoas de bem”, porque os “sabotadores de esquerda” infiltrados no jornalismo não deixavam o “estado de bem” trabalhar.

Queria ter deixado aos meus filhos um país ainda melhor do que aquele em que cresci. Mas não fomos capazes. Antes, o crime menor foi diminuindo, a justiça afirmou a separação de poderes de que necessitava para fiscalizar o poder e isso fez descobrir grandes criminosos escondidos na máquina do estado. Mas ao invés de nos satisfazermos por estarmos realmente a fiscalizar e a identificar os grandes criminosos, a voz gritou: "Os que estão no poder são amigos desses criminosos. Eles encobrem-nos!". O povo revoltou-se e o Arriva infiltrou-se na justiça. Depois apontaram para os pequenos criminosos, aqueles que menos se podiam defender e disseram que era eles os culpados de tudo, disseram que os subsídio-dependentes que não trabalhavam é que estavam a estragar tudo e as pessoas novamente viraram-se para aqueles “culpados”, desviando a atenção de cima, deixando o poder negro enraizar-se.

À medida que eles retiravam apoios das minorias a necessidade e o desespero fizeram aumentar o crime. Foram classes que nunca tiveram privilégios, viviam à margem, em pobreza, mas antes de tudo isto acontecer, graças aos apoios sociais, com garantias de saúde, educação e rendimentos mínimos para subsistirem, tentavam integrar-se, apesar da falta de formação viviam de biscates, mantinham-se acima da linha de água e do crime, alguns até conseguiam quebrar o ciclo e sair da miséria, haviam oportunidades. Mas o Arriva disse que eles eram chupistas, viviam dos nossos impostos, não contribuíam nada para a sociedade e nós não os devíamos manter com o nosso trabalho. O Arriva nunca contou que a maioria dos beneficiários destes rendimentos eram mulheres e crianças.  Mas o povo achou que ia receber mais, ou pelo menos pagar menos impostos, se os chamados chupistas deixassem de ter os subsídios. E as mulheres e crianças, assim como todos os desempregados das minorias, perderam esses apoios. Isso não fez ficar mais dinheiro no bolso dos trabalhadores, lá em cima encaminharam o dinheiro para negócios de armas, diziam que iam aumentar a segurança. Só que não. Mais armas a circular fez com que houvesse mais crime violento nas ruas. As necessidades criaram mais criminosos. E este ciclo vicioso fez a voz do Arriva gritar mais, culpar mais, pintaram alvos em todo o lado e cada vez mais tínhamos medo de sair à rua.

A insegurança, o medo, as dificuldades fizeram sair à ruas os protestos, geraram-se motins, levantaram-se estandartes pelo bem, mas pelo meio queimaram-se automóveis, partiram-se janelas, saquearam-se lojas. O exército foi chamado, a lei marcial imposta e quando tudo pausou as leis endureceram. O governo de extrema direita endureceu as penas, reforçou o braço da força e estreitou a ligação com esse braço. De repente o governo mandava pela força e não pela democracia. Encontravam-se muitos mais culpados e com penas mais longas. O mote era, melhor culpar dez inocentes que deixar escapar um culpado. Engraçado como ninguém viu antes que o suporte financeiro do Arriva vinha de quem vendia armas.

Depois deste período já é história o que se sucedeu até chegarmos aqui, voltou a prisão perpétua, a pena de morte, criminalizaram o consumo das drogas, proibiram o aborto, controlaram fronteiras, limitaram o ensino e o acesso a ele, instituíram a propaganda nas escolas e nos meios de comunicação… curioso como com penas mais fortes não reduzimos o crime. Com a criminalização das drogas não se reduziu o tráfico.  Com a proibição do aborto a mulher e as crianças não deixaram de sofrer. Com o controlo das fronteiras não resolvemos nenhum problema de Portugal, nem do mundo. Com o ensino e os média controlados e censurados não melhoramos os valores das pessoas.

Tudo isto já aconteceu, tudo isto é passado, agora é tarde demais para mudar o que a história já fez acontecer. Se ao menos tivéssemos percebido tudo isto à 20 anos atrás, antes do Arriva chegar ao poder…

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